Artigos - Projeto Droga Não

 

Vulnerabilidade ao HIV entre mulheres usuárias de drogas injetáveis

 

 

Valéria Nanci SilvaI; Ana Flávia d'OliveiraII; Fábio MesquitaIII

IPrograma de Pós-graduação da Faculdade de Medicina (FM). Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. Brasil
IIDepartamento de Medicina Preventiva. FM-USP. São Paulo, SP, Brasil
IIIMacfarlane Burnet Centre for Medical Research. Melbourne, Austrália

 


RESUMO

OBJETIVO: Analisar elementos da vulnerabilidade à infecção pelo HIV entre mulheres usuárias de drogas injetáveis.
MÉTODOS: Foram realizadas 13 entrevistas semi-estruturadas com mulheres usuárias (ou ex-usuárias) de drogas injetáveis, moradoras da Zona Leste do município de São Paulo, no ano de 2002. O roteiro das entrevistas abordou quatro eixos temáticos: contexto socioeconômico e relações afetivas, uso de drogas, prevenção contra a infecção pelo HIV e cuidados com a saúde. As entrevistas foram analisadas por meio de análise de conteúdo.
RESULTADOS: A pobreza, ausência de vínculos afetivos sólidos e continuados, expulsão da casa da família de origem e da escola, exposição à violência, institucionalização, uso de drogas, criminalidade e discriminação foram constantes nos relatos das entrevistadas. Esses elementos dificultaram a adoção de práticas de prevenção ao HIV como o uso de preservativos, seringas e agulhas descartáveis, e a busca de serviços de saúde.
CONCLUSÕES: A vulnerabilidade ao HIV evidencia a fragilidade da vivência efetiva dos direitos sociais, econômicos e culturais, o que demanda políticas voltadas para o bem-estar social de segmentos populacionais específicos como mulheres (crianças e adolescentes), de baixa renda, moradores da periferia, com pouco acesso a recursos educacionais, culturais e de saúde. Este acesso é dificultado especialmente àquelas que são discriminadas por condutas como o uso de drogas.

Descritores: Síndrome de imunodeficiência adquirida, prevenção e controle. Mulheres. Vulnerabilidade em saúde. Gênero e saúde. Abuso de substâncias por via intravenosa, prevenção e controle.


 

 

INTRODUÇÃO

A incidência de casos de Aids cuja via de infecção foi o uso de drogas injetáveis diminuiu, entre 1994 a 2004, de 21,4% para 9,4% dos casos notificados no Brasil. Entre os homens, a redução foi de 27% para 13% e entre as mulheres, de 17% para 4,3%.1 Esse fenômeno é compreendido pela mudança na disponibilidade das drogas ilícitas (crack) e políticas de prevenção.2 No entanto, a redução do uso de drogas injetáveis como via de infecção varia conforme a localidade. Na Zona Leste da cidade de São Paulo, em 2005 o número dos casos de Aids atribuíveis ao compartilhamento de agulhas e seringas ultrapassava a soma das categorias bissexual e homossexual de transmissão.3

Nas últimas duas décadas, a noção de vulnerabilidade vem sendo desenvolvida e utilizada internacionalmente para o entendimento e enfrentamento da epidemia pelo HIV,3 denotando maior suscetibilidade ao HIV entre indivíduos ou populações desfavorecidas em relação aos programas e serviços voltados ao problema e à proteção e promoção de seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

O uso de drogas, especialmente a cocaína aspirada, o crack e os psicofármacos de uso injetável permanecem como elementos importantes para vulnerabilidade ao HIV.1

A vulnerabilidade à infecção pelo HIV entre as mulheres usuárias de drogas injetáveis (UDI) é complexa e relativamente pouco conhecida. As mulheres UDI permanecem sob risco de infecção pelo HIV pelo compartilhamento de agulhas e seringas, sexo sem preservativo, prostituição12,18 e a vivência de situações de violência.5,13,14

O objetivo do presente estudo foi analisar os elementos que podem contribuir para a vulnerabilidade à infecção ou re-infecção pelo HIV entre mulheres UDI.

 

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O estudo foi realizado com mulheres usuárias (ou ex-usuárias) de drogas injetáveis, moradoras da Zona Leste do município de São Paulo, em 2002. Foram convidadas a participar do estudo 13 mulheres UDI. O convite foi feito por profissionais da saúde, chamados redutores de danos, que realizam atividades de prevenção à infecção pelo HIV. Foram conduzidas entrevistas semi-estruturadas, cujo roteiro abordava quatro eixos temáticos: contexto socioeconômico e relações afetivas, uso de drogas, prevenção contra a infecção pelo HIV e cuidados com a saúde.

As entrevistas, realizadas individualmente em sala do Serviço Especializado de Atendimento em HIV/Aids, tiveram duração de uma a duas horas.

As entrevistas foram gravadas e transcritas. As transcrições foram revisadas pela pesquisadora e os dados sistematizados segundo a técnica de análise de conteúdo,4 incluindo anotações de campo.

A análise de conteúdo compreende três etapas: pré-análise, decodificação e análise. A pré-análise visa organizar os dados coletados, passando por uma "leitura flutuante", que consiste em ter um primeiro contato com o texto. A decodificação (classificações dos dados) é uma transformação dos dados brutos do texto em núcleos de sentido, utilizados para a realização da categorização. Por fim, a análise possibilita explicitar as ocorrências incongruentes e/ou relevantes que fundamentam a discussão pretendida, que está ancorada na noção de vulnerabilidade.

A partir da análise das entrevistas foram destacados os elementos que se relacionavam com a vulnerabilidade ao HIV e/ou com a fragilidade de proteção dos direitos das mulheres UDI.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo. Todas as entrevistadas assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.

 

ANÁLISE DOS RESULTADOS

Contexto socioeconômico e relações afetivas

As entrevistadas residiam em favelas, casas com quintal compartilhado ou em pensão, duas delas com parceiros afetivos/sexuais e as demais, com familiares.

Doze das 13 entrevistadas não completaram o ensino fundamental e uma havia completado o ensino médio. Suas idades, ocupação e número de filhos estão descritas na Tabela 1. Onze das mulheres entrevistadas mencionaram também mendicância, assaltos e/ou tráfico de drogas como meios de subsistência.

 

 

Seis entrevistadas relataram detenção na Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (Febem) e sete em penitenciárias.

"... porque nós pegamos muito dinheiro, pegamos muita droga e começamos a tomar. (...) É muita bagunça e o vizinho do lado do barraco chamou a polícia. E a polícia chegou na hora e todo mundo apanhou e foi todo mundo em cana. Ai eu fui para Febem entendeu?..." (Janete, 46 anos)

Apesar da experiência negativa de privação de liberdade, foram percebidos aspectos positivos da permanência nestes locais, como a possibilidade de aprendizado escolar ou profissional, denotando exclusão à escolarização e profissionalização a que estão expostas essas mulheres.

"... Acho que cinco anos foi melhor, deu para aprender mais, bem mais. Deu para aprender mais, as coisas que eu fazia lá [na prisão], fazia bem para mente pro corpo. Melhor do que agora (...) na rua, trabalhei com artesanato, que faz cadeira, mesa, conjunto (...) que eu também aprendi na cadeia depois que eu sai eu fiquei trabalhando nisso..." (Maria, 34 anos)

Os vínculos familiares foram descritos com queixas de falta de afeto e cuidado. A figura paterna foi mencionada por sete entrevistadas: cinco delas conheceram o pai e duas foram criadas pelo padrasto. Embora a figura materna tenha sido mais presente, apenas duas não foram cuidadas pelos avós, tios e outros parentes durante algum período da vida. Três entrevistadas haviam ficado órfãs de pai ou mãe antes de completar 15 anos.

Em relação aos cuidados maternos das entrevistadas para com seus filhos, nove crianças estavam sob cuidados de familiares ou conhecidos e duas morreram. Os impedimentos mencionados para cuidados mais extensivos foram as prisões, o uso de drogas e/ou tratamento (três internadas em clínicas), carência econômica e falta de apoio familiar, especialmente dos parceiros.

"... aí larguei a minha filha com a minha mãe, com minha irmã. Aí me joguei, viajava muito, tomava muito baque [drogas pela via injetável]..." (Angélica, 29 anos)

"... não, o pai dele eu nem sei quem é. Eu não sei quem é o pai do meu filho. Porque foi numa época que eu tomava muito baque, entendeu? Eu morava na Praça da Sé, então eu era prostituta entendeu..." (Janete, 46 anos)

"... eu separei dele quando minha mãe morreu. Aí eu vim para São Paulo e ele ficou lá mesmo em Santos. Nunca mais eu soube dele (...) o Daniel de 16 anos que é o filho dele, não sei se ele é vivo, se não é, nunca mais soube dele..." (Maria, 34 anos)

As parcerias sexuais relatadas são múltiplas e temporárias, com diversos relatos de mortes e abandonos (por troca de parcerias e violência doméstica).

Episódios de violência familiar, incluindo a violência sexual antes dos 12 anos, foram narrados pelas entrevistadas e, para algumas delas, justificaram a vivência de situação de rua, prostituição, pequenos delitos e uso de drogas.

"... eu saí da minha casa eu tinha 12 anos de idade e aí eu fui para rua. Aí então eu comecei a cheirar cola e tudo quanto foi tipo né? (...) Aí minha mãe estava envolvida com outro homem entendeu e esse homem acabou fazendo o que comigo, acabou me estuprando. Então eu peguei e me revoltei, virei a minha cabeça né? E entrei no mundo da prostituição. Ali foi, ali naquela, que eu comecei a usar drogas e que eu injetei na boate a primeira vez...." (Tânia, 27 anos)

Onze das entrevistadas vivenciaram situações de violência física durante a vivência de situação de rua (uso de drogas e/ou prostituição) ou em outros contextos, envolvendo agressores diversos como: os parceiros sexuais, traficantes, amigos e outros usuários de drogas.

"(...) encostou o revólver na minha cabeça, agora você vai ser colocada na banca [sexo com todos os presentes]. Fazer o quê? Tinha que fazer o que ele queria ou ele me matava ali mesmo..." (Tânia, 27 anos)

Uso de drogas

Seis entrevistadas iniciaram o consumo de drogas entre 12 e 15 anos, e as demais, entre 16 e 18 anos. Comumente, o consumo era realizado de modo associado. As drogas mencionadas pelas entrevistadas foram: álcool, inalantes, maconha, cocaína (aspirada e injetável), crack, anticolinérgicos e inibidores de apetite, utilizados sem prescrição.

Para cinco entrevistadas a experimentação de drogas coincidiu com a evasão escolar e a vivência de situação de rua durante a adolescência, incluindo prostituição, roubo, furto e tráfico.

"... eu saí da minha casa eu tinha 12 anos de idade e ai eu fui para rua. Aí então eu comecei a cheirar cola e tudo quanto foi tipo né? (...) saí aos 13 anos da escola, nunca mais freqüentei..." (Tânia, 27 anos)

"... [saí da escola por] vergonha (...) tudo que acontecia [conflitos familiares] assim em casa, ela (a mãe) comentava com os vizinhos (...) as meninas [vizinhas] estudavam tudo comigo, ai chega na escola você já sabe, ai começa espalhar (...) Até a professora também (...) eu comecei a usar isso aí [droga] por causa da revolta (...) ela falou assim se eu quisesse morar lá eu tinha que respeitar ela [mãe] (...) lavar a cozinha, tem que limpar, fazer comida na marra eu não admitia isso (...) senão ela me punha na rua, peguei simplesmente no outro dia (...) pulei a janela e fui pra rua (...) então dali fui pra Febem... (Ana, 29 anos)"

O consumo de drogas foi compreendido pelas entrevistadas como um modo de reagir aos lutos, carência afetiva, revoltas, vergonha, violências e carência econômica. Onze entrevistadas mencionaram aspectos negativos relacionados a este consumo: perda de filhos, discriminação, sensação de menos valia e danos à saúde, agravando os problemas enfrentados.

"... não tinha pai, só tinha mãe, família muito pobre, eu, não tinha condições para nada. Então achei que no mundo das drogas eu ia ter tudo aquilo que na minha casa eu não tinha..." (Janete, 46 anos)

"... esses anos de vida na rua fui pra um hotel, o homem me fez na marra [primeira relação sexual]. Falou que ia trocar o dinheiro e me deixou dentro do hotel. Eu gritava: - Meu Deus me dê força pra mim não quebrar! Foi a coisa mais horrível, eu pastei muito na rua, por isso que eu tenho o vício de usar droga..." (Ana, 29 anos)

Em relação ao consumo de drogas injetáveis, a rede de amigos, os parceiros e até irmãos foram aqueles que aplicaram a primeira dose.

"... eu só cheirava entendeu? Depois, eu vi as pessoas injetando, fiquei com vontade, fui e injetei..." (Angélica, 29 anos)

"... desde 16 anos e eu tenho 34 anos (...) Eles tomam baque! Eu pensava: Quero saber como que é. (...) Aí fomos na escada de um prédio (...) Aí um aplicou no outro e tal." (Maria, 34 anos)

Houve relatos nos quais parceiros sexuais facilitaram o primeiro contato com as drogas e até sustentaram o consumo por algum tempo. Mas, em outros casos, passaram a controlar ou impedir o uso.

Entre as entrevistadas, o consumo de drogas injetáveis era realizado em grupos (amigos e/ou parceiros afetivos) e em locais isolados (residência própria ou de amigos). Na urgência de socorrer os amigos em crise de overdose, estratégias como colocar uma colher na boca e/ou pressionar o peito da pessoa foram utilizadas, não havendo busca por serviços de saúde de emergência. O receio da intervenção policial, da discriminação nos serviços de saúde e o próprio uso de drogas explicam esta recusa, aumentando a vulnerabilidade dessas mulheres.

"... eu me empolguei. Nisso aí a língua dela foi enrolando (...) E quando eu vi (...) mas eu não tô nem aí que ela caiu morta entendeu? (...) Eu tomei a noite inteira (...) então deixa lá [a amiga morta] e cai fora se não dá cadeia...." (Janete, 46 anos)

"... aí eu pus uma dosagem maior porque eu queria mais (...) aí ela ficou me segurando, puxando minha língua, tava enrolando. Aí quando acordei tava toda machucada, toda mordida, acordei com o braço tamanho assim..." (Ana, 29 anos)

Prevenção contra a infecção pelo HIV

Informações sobre o HIV e estratégias de autocuidado diferiram entre as entrevistadas. Aquelas que iniciaram a vida sexual e o uso de drogas antes dos anos 90 não possuíam informação sobre a chance da contaminação por HIV. As demais afirmaram ter ouvido um "boato" sobre a Aids e que se preocupavam com a compra ou a limpeza das seringas, mas com conhecimentos e habilidades bastante imprecisos.

"... sabia de nada, eu usava com outro, ia usava o outro ia e usava também. Eu acho que foi nisso que eu peguei o vírus..." (Maria, 34 anos)

"... injetar para limpar (...), injetar um pouquinho de água, molhava e dava entendeu? Mais não assim, entendeu? Não, embasado ainda, mais hoje em dia com essas 'doençadas' toda aí!..." (Angélica, 29 anos)

Apenas uma entrevistada afirmou ter usado preservativo pelo menos uma vez na vida. A confiança nos amigos e parceiros fixos, o uso de drogas, o desejo de prazer e a crença de que o homem é o responsável pelo cuidado preventivo (por imaginarem que eles são mais "experientes") foram as razões referidas para os comportamentos inseguros.

"... não porque agora eu só vivo com ele, eu transo com ele, eu só me satisfaço com ele. A gente só usa droga dentro de casa, mas também só aquilo ali. Só encontra [com pessoas com as quais compartilha drogas e seringas] com alguém que está lá dentro [da casa], que vai lá..." (Tânia, 27 anos)

"... muitas vezes o baque e, às vezes, você pode beber ou fumar, pode se excitar assim mais! (...) aí você não quer saber de nada. (...) até se seu marido é acostumado a usar só camisinha, você sai até sem camisinha...dá uma pirada geral..." (Angélica, 29 anos)

O envolvimento de muitas entrevistadas em prostituição, roubos, tráfico e detenção em penitenciárias foram fatores que contribuíram para comportamentos de risco, como compartilhamento de seringas e agulhas, bem como sexo inseguro.

"... rolava mais maconha, cocaína. Pra comprar fazia crochê, vendia os crochê e tal, uma grana [na prisão]..." (Maria, 34 anos)

"... não usava camisinha e era na área mais podre que tem [trabalhava como profissional do sexo]. A área da Praça da Sé é a área mais podre. Você acredita que eu cheguei a transar até com mendigo! Doidona de cocaína, só porque o mendigo tinha coca..." (Janete, 46 anos)

Em relação à infecção pelo HIV, cinco entrevistadas afirmaram ser soropositivas. Quatro acreditavam terem sido infectadas por via sexual e uma pela via sangüínea. Três eram soronegativas e cinco não sabiam seu estado sorológico.

Entre as entrevistadas soropositivas, quatro não realizaram procedimentos de cuidado e prevenção (à re-infecção) após o conhecimento de sua situação sorológica.

"... depois que eu soube que eu era soropositiva se eu contaminei alguém? Ah! Com certeza, de propósito, de propósito, de pirraça, dois caras..." (Janete, 46 anos)

"... transei sem camisinha e tudo, só tava interessada na droga e eu sabia que eu tava doente, não tava nem aí se eu tava preservando a vida da outra pessoa ou não (...) eu vinha aqui de vez em quando, tomava remédio de vez em quando. Não tinha um tratamento, né meu? Eu nunca durei, eu faço tratamento há cinco anos, eu nunca tinha tomado o remédio certo, né meu?..." (Daniela, 27 anos)

Como os cuidados com a saúde ocorriam prioritariamente em momentos de emergência, foram os sintomas da Aids que impulsionaram a busca pelo teste e tratamento. O uso de drogas e os deslocamentos constantes (pelos encarceramentos, para o tráfico, por fuga dos traficantes e/ou da polícia, para acompanhar parceiros presos em outras cidades, entre outros motivos), foram vistos como impedimentos para a continuidade do tratamento das entrevistadas soropositivas ou para a adesão aos serviços de saúde.

"... precisei porque descobri o HIV em 98, eu descobri porque peguei uma pneumonia né?..." (Janete, 46 anos)

"... tomava remédio de vez em quando. (...) Aí quando eu fiquei grávida da menina eu ia pra Uberlândia, eu não usava droga direto, então o que aconteceu? Eu comecei a usar o remédio mais certinho, né? Eu tinha uma dificuldade terrível com o horário..." (Daniela, 27 anos)

Cuidados com a saúde

As entrevistadas relataram temer a reação dos profissionais de saúde, principalmente a denúncia, e por este motivo afirmaram buscar os serviços de saúde apenas em situações extremas.

"... medo, tudo parece que vai envolver polícia, [os UDI] têm medo de fazer exame e descobrir que é usuário de drogas e dá cadeia, têm medo disso..." (Janete, 46 anos)

Não houve interrupção consistente do uso de drogas no período da gestação, o que dificultava a busca de serviços médicos para a realização da rotina pré-natal.

"... eu não ia fazer pré-natal, porque eu pegava 8 horas e tinha horário certo. Tinha que ser das nove da manhã em diante e eu acordava cedo e ia pra casa dela [amiga] e usava [drogas], não tinha como fazer pré-natal..." (Ana, 29 anos)

Na maioria dos casos, tal procura foi estimulada por uma demanda aguda (acidente, dores, agressões) em detrimento dos acompanhamentos agendados regulares.

"... foi assim, eu tinha brigado com umas minas e ela tinha me dado um chute [na barriga] tal. Aí eu fui passar no ginecologista entendeu?..." (Janete, 46 anos)

"... e na hora 'H' fui bem louca ainda (...) nem o soro eles quis colocar em mim, porque meu braço não tava legal entendeu? [por causa do uso de drogas injetáveis] Aí onde eu sofri pra colocar no mundo, eu sofri demais por causa das drogas. Ele encalhou (...) Nasceu com falta de ar no coração (...) eles 'quis' fazer fórceps. (...) o médico (...) pediu todos os exames. (...) 'A senhora usa droga né? (...) não vou te aplicar nada, se eu aplicar alguma coisa em você eu vou matar (...) Seu negócio pode ser cana, se eu ligar pros homens daqui, se eu ligar vou te denunciar...'" (Ana, 29 anos)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A noção de vulnerabilidade, aqui utilizada como eixo de análise, inclui não somente as informações e comportamentos individuais como responsáveis pela susceptibilidade à infecção pelo HIV,3 mas também o acesso às políticas públicas voltadas para o controle da infecção pelo HIV e aspectos sociais, como acesso a trabalho, moradia, educação, informação, participação política, além das normas culturais de gênero, raça e geração. Essas três dimensões da vulnerabilidade são complementares e sinérgicas, sendo separáveis apenas para fins de análise, conforme a Tabela 2.

As experiências relatadas de carência afetiva, falta de cuidado familiar e violência nas relações familiares de origem, contribuíram para o início do consumo de drogas,4 e configuram um contexto que pode trazer prejuízos para a auto-imagem, resultando em comportamentos anti-sociais, autodestrutivos e de risco,2 gerando maior vulnerabilidade à infecção pelo HIV.

A fuga de casa e a vivência de situação de rua pelas entrevistadas reiteram a situação de mulheres desabrigadas, relatada por Fisher et al (1995):9 são mulheres que permanecem sob maior risco de exposição a drogas, situações de violência, e à infecção pelo HIV.

No que tange à vulnerabilidade social à infecção pelo HIV, os elementos mencionados pelas entrevistadas conformam um cenário específico de pobreza associada à carência de políticas públicas para a garantia de direitos sociais, econômicos e culturais. Nesse cenário destacam-se a fragilidade da manutenção do acesso à escola e aos serviços de saúde, a vivência em espaços demarcados pela clandestinidade, marginalidade e violência, e a inclusão recorrente em instituições corretivas e de recuperação.

A precariedade de acesso às diversas instituições públicas pelas mulheres entrevistadas, exceto as repressivas, deve ser levada em conta como elemento que condiciona e modela a vulnerabilidade ao HIV, bem como o uso abusivo de drogas e vivência de situações de violência e criminalidade.

A integração do usuário de drogas no comércio ilegal de drogas ou no comércio sexual é recorrente entre as populações extremamente empobrecidas.6,14 A inserção das entrevistadas em espaços marginais e clandestinos demarcou-as com os estigmas10 de "criminosas", "drogadas", "prostitutas". Tais estigmas reforçaram a exclusão social, dificultando o acesso aos serviços públicos de saúde e educação, e aos insumos de prevenção contra a infecção pelo HIV, devido ao medo da discriminação e criminalização em relação ao uso de drogas.

A repressão ao uso de drogas e os encarceramentos vivenciados colaboraram também para que as mulheres apresentassem comportamentos inseguros, seja pelo uso de drogas em locais afastados e escondidos, seja pela dificuldade de acesso aos insumos preventivos no interior das instituições (mas não das drogas).16

A dificuldade de uso de preservativos é comum entre mulheres que não usam drogas. Tal situação é compreendida pelas normas culturais de gêneros,8 que orientam o modo de vivenciar a sexualidade, as escolhas dos parceiros11 e a possibilidade de negociação do uso de preservativos.17 Essas normas se refletiram nos relatos das entrevistadas pela crença de que, por possuir maior conhecimento, o homem seria responsável pelos cuidados preventivos, ou pela confiança depositada na fidelidade do parceiro fixo.

O fato de as entrevistadas somente buscarem os serviços de saúde em situações emergenciais, associado ao medo da reação dos profissionais, mostra a percepção do estigma imputado e o temor da discriminação.10 Assim, ter o virtual acesso aos serviços de saúde não garante o seu uso consistente, diante dos entraves percebidos por elas. Desse modo, apesar da qualidade formal de cidadania, as entrevistadas pouco se beneficiam como cidadãs no cotidiano,1 ainda menos do que a parcela da população submetida à precariedade econômica, mas não às discriminações aqui discutidas.

Na perspectiva da vulnerabilidade programática, o programa de redução de danos mostrou-se estratégico por acessar os UDI e tornar disponíveis informações e insumos preventivos contra a infecção pelo HIV. No entanto, o programa não foi suficiente para garantir o uso consistente dos serviços de saúde nem a aderência ao tratamento da Aids pelas mulheres soropositivas entrevistadas.

No âmbito individual da vulnerabilidade, dentro do contexto de vida das entrevistadas, de ameaça iminente e constante à integridade física, a prevenção ao HIV visando evitar um possível dano futuro adquire uma importância extremamente relativa,8 e faz com que estratégias de proteção percam em muito seu sentido. Deste modo, as estratégias de prevenção e cuidado à infecção e re-infecção entre as entrevistadas diferem das preconizadas pelos técnicos da saúde. Mas, mesmo quando as entrevistadas possuíam informações consistentes sobre a prevenção do HIV, os diferentes significados dados aos comportamentos e às relações grupais ocasionaram conflitos entre a razão, os desejos e a compulsão pelo uso de drogas.7,12

De acordo com outros estudos, as entrevistadas percebem o consumo de drogas como responsável por diversos prejuízos8 e como forma de reagir e resistir às experiências de privação econômica e afetiva.6

Diante da fragilidade verificada para o acesso e adesão das UDI aos serviços públicos de saúde e programas específicos de prevenção à re-infecção e tratamento da Aids, torna-se necessária uma nova postura dos profissionais de saúde, o que exige capacitação e aprimoramentos voltados para o combate à discriminação e melhor acolhimento e atendimento.

 

AGRADECIMENTOS

À Regina Bueno, aluna de pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pelas sugestões ao estudo.

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência | Correspondence:
Valéria Nanci Silva
Instituto de Psicologia
Av. Prof. Mello Moraes, 1721
05508-030 São Paulo, SP, Brasil
E-mail: valerian@usp.br

Recebido: 8/8/2006
Revisado: 2/8/2007
Aprovado: 5/8/2007

 

 

1 United Nations Office on Drugs And Crime. Brasil: perfil do país. Brasília; 2005 [Acesso em: 10/7/2007] Disponível em: http://www.unodc.org/pdf/brazil/COUNTRY%20PROFILE%20Por.pdf
2 Boletim Epidemiológico - Aids. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2000; XIII (03). 36ª a 52ª Semanas Epidemiológicas.
3 Secretaria Municipal da Saúde. Boletim Epidemiológico de Aids/HIV/Hepatites B e C do Município de São Paulo. Dezembro, 2005; IX (9): 12-13.
4 Salinas T. Violência intrafamiliar y consumo de drogas: uma perspectiva boliviana sobre la problemática. Cochabamba: COPRE; 1999 [Acesso em: 10/7/2007]. Disponível em: http://www.cicad.oas.org/Reduccion_Demanda/esp/documentos/DocumentosB/violenciaintrafam.doc

 

 

 

Drogas

 

       Nome genérico de substâncias químicas, naturais ou sintéticas que provocam alterações psíquicas e podem causar danos físicos e psicológicos a seu consumidor. O uso constante pode provocar mudanças de comportamento e causar dependência. Na dependência psíquica, há um desejo compulsivo de usar a droga regularmente, por seus efeitos psicotrópicos. Na física, o usuário apresenta problemas orgânicos decorrentes da falta da substância. O consumo excessivo de algumas drogas – a overdose – pode levar à morte.

       Maconha – Conhecida também como marijuana, é obtida das folhas e flores secas da planta Cannabis sativa. Consumida na forma de cigarro, é a droga ilegal mais usada no mundo. Das extremidades da Cannabis sativa é obtido o haxixe, também consumido como cigarro. A substância psicoativa da maconha e do haxixe é o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC). A maconha e o haxixe têm um teor de até 8% de THC, mas alguns tipos mais potentes de maconha, como o skunk, possuem até 33% de THC. Seus efeitos são relaxamento, hipersensibilização, sensação de bem-estar, fome, aceleração dos batimentos cardíacos, secura da boca e olhos avermelhados. Em doses elevadas, pode provocar alterações sensoriais, alucinações, delírios e agressividade. Entre as reações adversas estão ansiedade aguda, calafrios e pânico. O uso constante pode levar à redução da memória, distúrbios hormonais, dificuldade de concentração e aprendizado, perda de motivação, diminuição da libido e esterilidade temporária.

       Cocaína – Substância natural obtida a partir do tratamento químico, em laboratório, das folhas da Erytroxylum coca. Chega até o consumidor em forma de sal (cloridrato de cocaína), pedra (crack) ou pasta. Geralmente, é vendida como um pó branco que pode ser aspirado ou dissolvido em água para uso endovenoso. Seus efeitos iniciais são euforia, desinibição, falta de apetite, aumento do humor e da libido e sensação de poder. O uso contínuo pode causar quadro paranóico, irritabilidade e agressividade. Pode elevar a pressão arterial, provocar taquicardia e levar à parada cardíaca, o que em geral acontece nos casos de overdose. O uso crônico lesa o septo nasal e causa degeneração dos músculos esqueléticos.

       Crack – Derivado da cocaína, é comercializado na forma de pequenas pedras, que se volatilizam quando aquecidas. Inalado ou fumado em cachimbos, é absorvido imediatamente pelos vasos sanguíneos . Estimula o cérebro e provoca euforia e sensação de onipotência. Há dilatação da pupila, aumento da percepção, do ritmo da respiração e dos batimentos cardíacos. O consumo regular pode levar à dependência em cerca de três meses. Os efeitos negativos são irritabilidade, delírios, alucinações, aumento de temperatura e pressão arterial, convulsões, problemas respiratórios e cardíacos. Também ocasiona perda de peso, problemas com a visão e dificuldade para dormir.

       Ecstasy (MDMA) – A Metileno-Dioxo-Meta-Anfetamina (MDMA) é conhecida pelo nome de Ecstasy. Alucinógeno sintético, costuma ser apresentado sob forma de tablete, cápsula ou em papel impregnado com a substância. Difundida a partir do final dos anos 80, é chamada, de início, “droga do amor”, por estimular a libido.

       As anfetaminas são estimulantes que causam euforia e desinibição. O MDMA, uma anfetamina modificada, combina a ação estimulante a efeitos alucinógenos. Age diretamente na ligação entre os neurônios e os resultados são sentidos de 20 a 60 minutos depois de ingerida. Pode provocar uma sensação de intensa euforia e causar ansiedade, delírios, alucinações visuais e auditivas. Altera também o senso de percepção e avaliação da realidade. O aumento dos batimentos cardíacos pode levar à parada cardíaca. Há desidratação – o metabolismo acelerado eleva a temperatura do corpo (hipertermia) para até 42°C – e o usuário pode morrer devido ao excesso de consumo d’água. O uso prolongado pode danificar o fígado, o coração e o cérebro.

       Ópio – Há 5 mil anos consumido pelos sumérios, é um látex obtido a partir da Papoula somniferum . Aquecido e inalado, provoca euforia, seguida de sono. O excesso pode causar parada respiratória, colapso circulatório e levar à morte.

       Morfina – É o primeiro derivado do ópio produzido em laboratório (l803), com o objetivo de atenuar dores fortes. Injetada, provoca torpor e uma sensação de euforia. Sua overdose leva à morte por parada respiratória.

       Heroína – Criada em laboratório (1898) a partir do ópio. A substância básica é a diacetilmorfina, que é três vezes mais potente que a morfina e induz mais à dependência. Geralmente injetada, também pode ser aspirada ou fumada. Modera as emoções, altera o humor e provoca sensação temporária de bem-estar e sonolência. A falta da droga causa diarréias, náuseas, vômitos fortes e pode levar à morte por desidratação.

Ácido Lisérgico (LSD) – Substância sintética que produz efeitos semelhantes aos das plantas alucinógenas. Provoca distorções sensoriais e pode causar angústia e pânico. Seus efeitos são aceleração dos batimentos cardíacos, aumento da transpiração e dilatação da pupila. O risco maior não está na toxicidade da substância, mas na sensação de onipotência que provoca, que faz o usuário perder o senso de perigo.

Cola de sapateiro e lança-perfume – Drogas inalantes que possuem substâncias classificadas como solventes. O tolueno é o ingrediente ativo da cola. Tem efeito similar ao do álcool: provoca euforia, perda da coordenação motora e, no extremo, vômito e coma. O principal ingrediente do lança-perfume é o éter. A substância deprime o sistema nervoso central, podendo provocar desmaio, enfarte e gastrite.

Os inalantes têm propriedades anestésicas e tranqüilizantes, mas podem produzir euforia. Em alguns casos causam dificuldade para falar e perda do equilíbrio. Se usados por período prolongado, podem causar problemas no sistema nervoso, fígado e coração.